Para ver os pássaros, é necessário fazer parte do silêncio – Robert Lynd
Entrar na mata, parar, escutar, andar mais dois passos. Ouvir um canto distante de um corrupião, mais dois passos, um choró-boi canta mais perto. Chega rápido um bando misto com quatro espécies em copa alta. Mais 20 passos, um beija-flor zune em cima da cabeça e um gavião voa bem longe. Ouvir um pássaro desconhecido, gravar e repetir o som para chamá-lo para perto. Paciência, silêncio, curiosidade, sentimento de fazer parte da natureza. Uma fotografia bem feita com a luz matinal.
Há muito em comum entre a observação de aves (birding, birdwatching) e o Estoicismo. E a observação está intrinsicamente ligada ao contato com a natureza. Sêneca já escrevia sobre isso há 2.000 anos:
“Devemos fazer caminhadas na natureza, para que a mente possa ser nutrida e revigorada pelo ar livre e pela respiração profunda”
– Sêneca
Existem clubes, grupos e sociedades de observação de pássaros há pelo menos 200 anos, com raízes na ciência naturalista inglesa e norte-americana. E, embora a tecnologia de gravadores e máquinas fotográficas atualmente nos permitem muitos avanços, a atividade permanece similar. Ted Parker, considerado por alguns um dos maiores observadores do século 20 (morreu tragicamente num acidente de avião no Equador em uma de suas viagens ornitológicas), seguia a risca o termo “observar”: sempre caminhando lentamente por uma trilha, parando a cada passo, observando e ouvindo; identificando, encontrando as aves e anotando características e comportamentos.
Viver de acordo com a natureza
Segundo os Estoicos, devemos viver de acordo com a natureza, embora essa frase possa servir a várias interpretações. Sobre a beleza da Natureza em todas as formas, Marco Aurélio escreve no seu diário:
“Assim, ao nutrir a sensibilidade e uma observação aprofundada a respeito daquilo que é produzido no universo, dificilmente haverá uma manifestação consequente que não pareça disposta a proporcionar prazer. Então até mesmo as mandíbulas escancaradas das feras selvagens não serão vistas com menos prazer do que aquele proporcionado pelas imitações produzidas por pintores e escultores. E em uma anciã ou um ancião, ver-se-á também maturidade e formosura. E a beleza atraente dos jovens será apreciada com olhos castos. E muito se apresentará que não agradará a todos, mas apenas àquele que se torna verdadeiramente familiarizado com a natureza e suas obras” .
– Meditações, III, 2
Em outro lugar, ele medita sobre como “os pássaros que cuidam de seus filhotes” mostram uma forma de afeto natural (philostorgia) por sua própria espécie (Meditações 9.9). O olho estoico pode contemplar uma beleza abrangente porque não é turva por julgamentos que podem embaçar a visão.
No livro Bird Therapy, de 2019, o autor Joe Harkness descreve sua luta com doença mental e tentativa de suicídio, e afirma que os pássaros são uma fonte constante e confiável de contentamento, em um mundo e em uma sociedade que muitas vezes estão longe disso. Na verdade, Joe insinua como um relacionamento harmônico com o mundo natural está inerentemente conectado com um relacionamento saudável conosco e com nosso bem-estar mental. Na observação de pássaros há uma sensação de cura.
Caminhar
Os filósofos sempre gostaram de caminhar, bem antes de relógios e celulares inteligentes contarem os nossos 10.000 passos diários. Sócrates e Diógenes caminhavam por muitos quilômetros todos os dias em pés descalços. Ao andar pela mata com cuidado e respeito, remontamos ao que fez o homem moderno a evolução dos caçadores-coletores.
Epicteto diz, por exemplo, que quem anda muito e descalço deve obviamente ter cuidado onde vai, caso pise em um prego ou machuque o pé. Ele falava a seus alunos que, da mesma forma, eles devem ser cautelosos para não prejudicar seu próprio caráter por meio dos julgamentos de valor que fazem, que os estoicos acreditam ser a causa raiz de nossos medos e anseios doentios.
Ao caminhar pelas florestas e matas do Brasil (sempre ameaçadas e cada vez menos abundantes), aprendemos a respeitar a natureza e a observar não apenas os pássaros, mas o tamanho e a fugacidade da nossa insignificância.
“Algumas coisas se apressam em existir, e outras se apressam em deixar a existência; e mesmo o que quer que exista atualmente, uma parte de si já pereceu. Fluxos e mudanças renovam o mundo de forma contínua, assim como o curso ininterrupto do tempo está sempre renovando a duração infinita das eras. Nesse fluxo em que não há permanência, o que dizer dessas coisas que se apressam, para as quais se estabeleceria um alto preço? Seria como se alguém se apaixonasse por um dos pardais que passam voando e que já desapareceu de sua vista. Assim é a vida de cada um dos seres, como a exalação do sangue, a respiração do ar”
– Marco Aurélio, Meditações VI. 15
Referências:
Meditations, de Marcus Aurelius
Wikiaves, a maior plataforma de registro de observação de aves do Brasil
Ebird, sítio mundial de registro de aves, da Universidade Cornell